pedia-lhe que contasse

 

pedia-lhe que contasse

e ela contava até perder o fôlego

das mulheres vagarosas  com colares de osso

a regressar da praça com sacos sem nada

e com  crianças saltitantes pela mão

contava sobretudo  dos tiros na noite   

da gente falando dentro de casa num sussurro

dos buracos de balas nos prédios sujos

das baratas e do entulho nos elevadores avariados

do chá que fazia as vezes do jantar e do sono

que se dormia cedo para enganar a fome

eu conhecia de cor tudo o que ela contava

mas pedia conta e ela contava até perder o fôlego

e enquanto ela contava eu via a praia

 onde acampámos por  uma noite  

bebendo cerveja mal curada  e contando histórias

via a varanda do teu reles apartamento que decretámos ser um palácio

via-te passeando pela feira de  camisola vermelha e cachimbo aceso

via o quintal com figueiras trespassadas de luar

as crianças suspensas de argolas de oiro com as tranças a abanar

a entrada da casa grande com cactos e trepadeiras nos  vasos de cerâmica

via os peixes de olhos brancos nas bancas da ilha

e por toda a parte a tua sombra me seguia

a tua sombra onde eu pousava o meu coração aflito

 

via e via e ela contava contava até perder o fôlego

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